segunda-feira, 22 de junho de 2015

"Futebol é um prostíbulo, e não há espaço para freiras"

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A frase que dá título a este post, e reflete o muro machista que cerca o futebol, teria sido dada por um presidente de federação estadual quando os jornalistas Amaury Ribeiro JR. (De "A privataria tucana"), Leandro Cipolini, Luiz Carlos Azenha (do Viomundo) e Tony Chastinet resolveram colocar no papel o resultado das investigações que se tornaram séries no Jornal da Record. Com prefácio do agora senador Romário (PSB-RJ), O lado sujo do futebol: a trama de propinas, negociatas e traições que abalou o esporte mais popular do mundo foi publicado em 2014, ano da Copa do Mundo FIFA Brasil que deu lucro recorde e bilionário para a entidade paraestatal.

Dividido em 11 capítulos mais um epílogo, está a história recente do futebol brasileiro, que pode muito bem ser resumida em dois nomes: João Havelange e Ricardo Teixeira. O que foi descoberto pelo FBI e anunciado pelo mundo há alguns meses já havia sido indicado aqui - e em outros livros antes, caso de Jogo Sujo, de Andrew Jennings, e o da Barbara Smit, sobre a guerra familliar do mundo do material esportivo a partir da família Dassler, ambos que aparecem aqui.

A relação midiática nisso tudo claro que iria aparecer. Afinal, o futebol atingiu esse potencial de indústria, fazendo girar tanto dinheiro entorno dele, especialmente graças à Indústria Cultural, que ajuda a construir mitos, por um lado, e por outro alimenta economicamente o jogo, que não viveria sem esse dinheiro.

O livro traz a origem do marketing esportivo, a partir da ideia do dono da Adidas em criar a ISL, justo a empresa que nos anos 2000 abriria espaço para revelar o propinoduto boleiro. Além disso, retrata a a participação brasileira nisso, com o Grupo Globo emprestando dinheiro para tentar salvar a empresa de marketing atingida financeiramente por erros estratégicos e pela distribuição de propinas, em 1998, o dinheiro que "sumiu" das contas, não aparecendo para a FIFA.


Depois, a Globo teria o dinheiro abatido na aquisição de direitos de transmissão dos torneios esportivos. E em 2013 descobriríamos que  elas usou empresas offshore para sonegar R$ 200 milhões em imposto de renda num momento de grave crise - depois pagaria mais de meio bilhão de multa, com cenas cinematográficas, como o sumiço do processo no Rio, algo que, claro também está no livro.

Claro porque o Azenha é um dos principais "blogueiros sujos", ou membros do PIG 2, junto a Paulo Henrique Amorim e Rodrigo Vianna, ex-Globo, contratados da Record com liberdade de ter blogs que falem contra a Globo e a favor do governo - ainda que PHA seja mais defensor (quase que surrealmente em alguns casos) que os demais.

Mas saber se relacionar com os grupos midiáticos vem das bases de Havelange, que ainda na década de 1950 escolheu um dono de grupo midiático, Paulo Machado de Carvalho, para chefiar a delegação para a Copa do Mundo FIFA 1958, algo que se estremeceu no mundial seguinte porque ele queria ganhar mais com os direitos de transmissão.


Em 1978, aparece a Globo na história. Com a Copa do Mundo na Argentina sob ditadura não havia condições técnicas no país para transmitir o mundial. Havelange, já presidente da FIFA, bateu na porta da Globo para ajudar - em parceria com a Embratel.

Para as emissoras, a relação com estas empresas garantem vantagens de mercado, o que na Economia Política da Comunicação chamamos de barreiras político-institucionais. Facilitando a vida de uma parceria em momento de crise, fica-se a dívida a ser paga no futuro. Graças à essa "relação histórica" que a Globo levou os direitos exclusivos para as Copas de 2010 e 2014 - a Record ofereceu mais, porém a CBF escolheu a emissora dos Marinho. Para as seguintes, 2018 e 2022, nem processo de licitação foi aberto.

O livro vai até perto da Copa. As relações com políticos, de Havelange a Marin, são destacadas como fundamentais. Aliás, fundamentais até para os políticos, pois não há enfrentamentos por nenhuma das partes - o livro não diz, mas o Estatuto do Torcedor, sancionado em 2003, deveria ter sido um enfrentamento, mas a relação se inverteu, especialmente com a Copa do Mundo no Brasil, e ele acabou ficando amigo de Ricardo Teixeira. As exceções foram Collor, por não ter dado tempo, e Dilma Rousseff, que viu a ojeriza em 2013 ao grupo da CBF e que fizera questão de evitar aproximações, mas que seguiu o barco dos gastos públicos com o Mundial - ainda que depois tenha se aproximado ao Bom Senso FC para tentar mudar um pouco da estrutura, blindada, do esporte no país.

Dos momentos de auge de enfrentamento - como o vivido agora, ainda que com nomes como Zezé Perrela e Fernando Collor na CPI a ser criada para investigar a CBF - estão as Comissões Parlamentares de Inquérito de 2000, na Câmara e no Senado, que investigaram a CBF e o contrato com a Nike e que, se tivesse ido em frente - o relatório não pode sair e o livro oriundo das CPIs foi impedido de ser publicado -, tudo o que se soube "agora" teria sido desvendado há mais de uma década.

O livro traz todos os documentos que serviram de pesquisa e é interessante para quem não acompanha os bastidores do futebol, um mal, diga-se de passagem, de boa parte do jornalismo esportivo do país, que acaba cedendo a jornalistas de outras áreas a investigação de casos assim. Uma leitura obrigatória para quem gosta do jogo.

REFERÊNCIA
RIBEIRO JR., Amaury; CIPOLONI, Leandro, AZENHA, Luiz Carlos; CHASTINET, Tony. O lado sujo do futebol: a trama de propinas, negociatas e traições que abalou o esporte mais popular do mundo. São Paulo: Planeta, 2014.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

A estatização da exibição dos jogos de futebol

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Devido aos escândalos envolvendo dirigentes do futebol mundial, graças especialmente ao recebimento de propinas para a cessão de direitos de exibição de eventos, marketing ou organização de torneios no mundo, muitos blogueiros e jornalistas passaram a crer que a Rede Globo de Televisão, maior detentora destes direitos no Brasil, possa ser afetada mais cedo ou mais tarde pelas investigações do FBI.

Remete-se ainda ao caso da multa que o Grupo Globo teve de pagar por montar um esquema financeiro para não declarar totalmente o valor referente à compra dos direitos de transmissão das edições de 2002 e 2006 da Copa do Mundo Fifa. Os quase R$ 200 milhões “sonegados” da transação viraram anos depois mais de meio bilhão de reais de multa, com direito a sumiço do processo na Receita Federal. Algo que só veio à tona graças ao blog O Cafezinho, de Miguel do Rosário, em 2013 – antes dele, Andrew Jennings, no livro Jogo Sujo, cita em determinado momento que o dinheiro pago pela Globo para o Mundial de 2002 não apareceu na conta da ISL, empresa de marketing esportivo responsável pelas marcas da Fifa e que faliu em 2001.

Aproveita-se o momento para clamar por uma estatização dos direitos de transmissão dos eventos de futebol no Brasil, somando-se ao coro de combate ao monopólio da informação, que gera um controle sobre a própria organização do futebol no Brasil – capaz de colocar jogos aos sábados às 22h por conta de um simples amistoso da seleção da CBF, como no último final de semana.

A ideia de quem defende este processo é que a TV Brasil, do complexo público-estatal Empresa Brasil de Comunicação (EBC), deveria adquirir os direitos de exibição ao menos do Campeonato Brasileiro de Futebol, como fez a TV Pública (Canal 7) da Argentina em 2009.

Os recursos da TV estatal

Fiz a minha dissertação de mestrado sobre a constituição do que eu denominei como um “monopólio de direito de transmitir”. Lá apresento o histórico das transmissões e afirmo que o modelo pós-2011, de negociação por clube, é o pior possível para este negócio. Digo isto para afirmar que, na atual conjuntura, não seria possível à EBC adquirir estes direitos. O que deveríamos priorizar no debate é a constituição de regras mais claras e um legítimo processo concorrencial, como foi desenvolvido na Europa, após ações em órgãos de fiscalização da livre concorrência sobre este programa midiático.

Explicando. Defendi em outros momentos neste mesmo Observatório a importância da TV Brasil transmitir futebol, no caso a Série C, apesar de possíveis gastos com este produto. Para este ano, a emissora virou sublicenciada de eventos esportivos da Fifa, transmitindo no momento os Mundiais sub-20 e Feminino, além do sub-17 e do Mundial de Futebol de Areia, pelos quais teria pago US$ 250 mil à Rede Globo, que pretende transmiti-los apenas em seu canal de TV fechada. Além disso, a parceira tradicional, Band, vive uma crise econômica que já a fez evitar a Copa do Brasil do ano passado e demitir vários funcionários em 2015, o que também abriu espaço para outra emissora.

Repito o que disse há alguns anos: o futebol é um produto importante por sua capacidade de atrair público. Por mais que a audiência venha caindo, o torcedor fiel e apaixonado por seu time e/ou por este esporte seguirá acompanhando. Para uma emissora nova, caminhando para sete anos de existência, é fundamental para se fazer conhecer – afinal, quantas vezes vemos e ouvimos alguém sugerir assistir a algo nela? – e atrair público para outros programas.

Mas chegar a adquirir o Brasileirão com exclusividade, como algumas pessoas vêm defendendo, é demais para uma emissora que tem como receita anual R$ 500 milhões. Esse valor total não daria para cobrir a oferta da Rede TV! na licitação frustrada de 2011, que era de R$ 514 milhões. Para se manter como “dono” dos direitos do torneio, o Grupo Globo deve estar desembolsando quase o triplo disso por ano. Assim, mesmo considerando que um grupo de empresas “apoiadoras” viesse junto com o pacote – especialmente se os recursos das grandes estatais fossem mais aplicados na TV estatal –, poderia ser um passo muito grande para o tamanho das pernas da EBC.

A Ley de Medios argentina

Por um simples cálculo, percebemos que seria impossível hoje que a EBC comprasse esses direitos. Não pretendemos entrar aqui na discussão sobre certo receio governamental em criar uma concorrente real no mercado aberto do audiovisual, apenas destacar também que a realidade local está bem distante do que foi visto na Argentina.

A compra pelo governo veio num momento em que os clubes estavam (e ainda estão) bem piores financeiramente que os nossos, recebendo valores bem abaixo do que os pago aqui no Brasil. Era de interesses dos clubes e da Asociación del Fútbol Argentino (AFA) (sob a presidência de Júlio Grondona, que assumira a direção da entidade ainda sob ditadura militar) mudar o contrato das mãos da Torneos y Competencias (TyC).

A TyC é uma sociedade que tem o Grupo Clarín como um dos acionistas, este que se tornou um inimigo da família Kirchner apenas a partir do mandato de Cristina como presidenta – supostamente por divergências em sociedades de mídia. Apesar disso, mesmo sem os direitos de exibição, a empresa foi contratada enquanto equipe de transmissão. Foi um casamento dos interesses econômicos dos clubes com os políticos da gestão, algo a que ainda não se chegou no Brasil, ao menos não no extremo de lá.

Em 2013, publiquei um artigo em que trago o que identifiquei de leis e regulamentações sobre o futebol no Brasil, especialmente sua relação com a mídia. Ao final destaco o que mudou com a Ley de Medios argentina – esta oriunda de outro processo, com maior exigência e participação social, ainda que vindo no rastro das divergências entre os Kirchner e o Clarín.

Direitos de transmissão na Argentina

Aponto inicialmente uma questão importante no que tange à questão dos direitos de transmissão de eventos esportivos e o livre acesso à assistência:

“[…] dentre os artigos do Capítulo VII, que trata do Direito ao acesso aos conteúdos de interesse relevante, o Artigo 77 garante o acesso universal, através dos serviços de comunicação audiovisual, dentre outros, ‘aos acontecimentos desportivos, de encontros futebolísticos ou outro gênero ou especialidade’ […]. A definição dos eventos desportivos na lei é para evitar que se tenha que pagar para ver a transmissão de jogos de futebol, forma de entretenimento de bastante relevância” (SANTOS, 2013, p. 45).

Uma grande questão é garantir, como em alguns momentos não houve no Brasil, que torneios importantes tenham transmissão em TV aberta. Aí sim, se não houver interesse da emissora que detém os direitos, que esta exibição possa ser feita por quem queira, não prejudicando o público. Vale lembrar que muitos eventos esportivos e programas midiáticos são adquiridos simplesmente para tirá-los das mãos de concorrentes – foi com esse intuito que a Globo tirou os torneios UEFA das mãos da Record, transmitindo nos primeiros anos apenas a partir das semifinais e só a UEFA Champions League.

A mudança atende ao outro ponto que destaco:

“Já o Artigo 80 trata da cessão e do acesso à transmissão. O exercício de direitos exclusivos de emissão deve ser justo, razoável e não discriminatório, de forma que o direito ao acesso universal gratuito seja garantido e que não se afete a estabilidade financeira e a independência dos clubes” (SANTOS, 2013, p. 46).

Aqui, sim, há um ponto discutível para o caso brasileiro: até que ponto este modelo de negociação dos recursos do broadcasting não tornaram os clubes dependentes do grupo comunicacional que os adquire? O que gera outra questão, mais difícil de responder: Como descobrir de forma jurídica se a independência de uma associação/clube, garantida pela Constituição, está sendo ferida por outra empresa?

Para finalizar, uma problemática ainda mais importante, que infelizmente mostra certo desconhecimento sobre o caso argentino. Lembro que os jogos do Campeonato Argentino não eram transmitidos em TV aberta – apenas um resumo dos gols após o final da rodada, ficando as partidas restritas à TV fechada. A TV Pública passou a transmitir o torneio em TV aberta, inicialmente todas as partidas, mas o sinal poderia e pode ser retransmitido por outras emissoras, desde que paguem uma taxa de sublicenciamento proporcional à sua audiência. É importante destacar que lá os direitos não são exclusivos, pois isso só poderia gerar uma troca de dependência por outra sobre o acesso possível ao telespectador.

Os cuidados a serem tidos com a proposta

De problema mais agravante, além da dependência financeira de uma administração quase sempre em crise – devido às práticas neoliberais que seguiram a partir da ditadura militar –, é que as outras emissoras são obrigadas a transmitir conforme o que é repassado, com todas as propagandas se referindo a ações do governo central. Quer dizer, pode-se pagar bem menos para retransmitir, mas é impossível vender os espaços de merchandising internos, o que freia as possibilidades de as concorrentes adquirirem recursos com o programa.

Numa comparação simples, mas “oposta” politicamente à EBC, pensemos que a TV Cultura, num arroubo surpreendente de investimento do PSDB em algo hoje misto, mas com grande contribuição do Estado, resolvesse tirar da Globo os direitos do Campeonato Paulista – que estarão em discussão em breve, pois o acordo acabou em 2015 – e os usasse para divulgar apenas ações do governo Alckmin, suposto futuro candidato a presidente da República pelo partido. Será que a opinião pela estatização seria a mesma? Provavelmente, como ocorre na Argentina, teríamos mais um exemplo de utilização do futebol como instrumento político-eleitoral.

Vale lembrar que a Sabesp, empresa responsável pelo esgotamento sanitário e distribuição de água – esta não coincidentemente em crise –, além de se tornar mista nos governos do PSDB, serviu como instrumento de propaganda antes de o então governador José Serra entrar na candidatura a presidente da República em 2010, com publicidade nacional especialmente para eventos esportivos mostrados no Esporte Espetacular. Quer dizer, não seria impossível a suposição comentada no parágrafo anterior.

Assim, necessitamos ter muito cuidado no que propomos como algo voltado aos interesses da população para que isso não pareça revanchismo. Nas condições dadas há questões muito mais simples a questionar, especialmente num país em que o mercado de comunicação é praticado quase que sem qualquer regulação. Uma delas é o fortalecimento de um grupo comunicacional efetivamente público, que não mude de acordo com a gestão estatal, algo que pode alterar o perfil do que é oferecido à população.

Referências bibliográficas

SANTOS, Anderson David Gomes dos. A consolidação de um monopólio de decisões: a Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. 271 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo, RS, 2013b.

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Políticas públicas para transmissão de esportes: análise de dispositivos legais sobre o desporto e a comunicação. Revista Brasileira de Políticas de Comunicação, Brasília, nº 4, p. 35-49, jul.-dez. 2013.

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Texto publicado na edição n. 854 do Observatório da Imprensa.

domingo, 7 de junho de 2015

O bem simbólico como instrumento da corrupção

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A quarta-feira, 27 de maio de 2015, poderá ficar na história como o dia em que o futebol começou a ser mais transparente. A prisão de sete dirigentes de confederações nacionais e continentais na Suíça, em ação conjunta do FBI e da polícia daquele país, confirma o que se imaginava há anos: o futebol sendo usado para crimes.

Esporte querido por muitos, não é a primeira vez que isso ocorre. Afinal, quantas vezes não vimos notícias de esquemas que, dentre outras coisas, até interferiam no resultado dos jogos, por conta de altas apostas em redes internacionais? Aqui, optamos por destacar não este caso em si – incluindo aí a possível participação das empresas de mídia no processo, algo que o Grupo Globo opta por destacar que elas não teriam nada a ver –, mas para tentar entender algo mais geral quando se trata da utilização de um bem cultural como instrumento de corrupção, casos do que ocorreu neste esporte, em outros esportes (como a investigação sobre a Confederação Brasileira de Vôlei) e também nas esferas político-partidárias, como teria ocorrido no “Mensalão do PT” (como é chamado para se diferenciar do realizado por governo do PSDB em Minas Gerais).

Quantas vezes não ouvimos dos dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) que a entidade é uma associação privada e, como garante a Constituição, tem liberdade de definir suas normas, limites e proteger seus dados? É preciso recorrer à construção deste esporte no Brasil, e em outras partes do mundo, para lembrar que a elite abandonou os campos para a gerência dos clubes a partir do momento em que percebeu que aquilo poderia ser um negócio bastante lucrativo – basta pensar a diferença da quantidade de dirigentes (e até técnicos) negros quanto comparados aos jogadores no país, refletindo a contradição de classes existente.

A Fifa é dona do football association. Não é à toa que exige que não haja qualquer interferência estatal nas confederações continentais e nacionais, punindo com dois anos fora de qualquer competição internacional caso isso ocorra. O caso do uruguaio Luís Suárez também demarca esse controle privado. Afinal, ele, detentor da prática de jogar futebol – muito bem, por sinal, como mostra no Barcelona –, foi proibido até de entrar num campo de treinamento após morder o italiano Chiellini na Copa do Mundo Fifa Brasil 2014.

Brechas fiscais e pagamentos “por fora”

Uma entidade supranacional que tem 16 países a mais que a Organização das Nações Unidas e blinda seus participantes de quase toda investigação criminal – afinal, por exemplo, caso a Polícia Federal descobrisse um crime na CBF e o governo federal indicasse um interventor, as seleções e times da entidade seriam excluídos de torneios internacionais.

A blindagem é grande, mas não é caso único. Várias associações, esportivas ou não, possuem suas sedes na Suíça porque o país tem leis mais flexíveis quanto à taxação fiscal e na fiscalização de onde vem o dinheiro. Apesar disso, antes mesmo do Fifagate, a justiça suíça puniu dois dirigentes da Fifa a pagarem pesadas multas para não serem presos. A empresa de marketing esportivo ISL, responsável pela imagem da entidade e que ainda assim faliu no início dos anos 2000, garantiu pagamentos de multas de Ricardo Teixeira e João Havelange, ex-presidentes da CBF e o último dirigente principal da Fifa por 24 – tendo o atual, Joseph Blatter, como braço-direito por muito tempo.

É necessário lembrar que enquanto bem cultural é difícil definir de forma clara, justificar, a precificação de determinada atividade, seja uma publicidade, a exibição de um torneio esportivo ou quanto custa um jogador. Assim, são alguns os casos de denúncias de crimes, especialmente fiscais, ligados a estes elementos. A única forma de desconfiar que algo está errado é quando há movimentação de recursos não justificada frente às autoridades fiscais. Fora isso, como dizer que a publicidade usada por determinada empresa custou R$ 5 mil ou R$ 10 mil? Como afirmar que um jogador valeu os R$ 50 milhões da multa rescisória ou o dobro disso – dúvida que o governo espanhol investiga no caso da venda de Neymar para o Barcelona? Qual o elemento matemático para estabelecer que a transmissão de um evento vale exatamente 10 vezes mais que a de outro?

Aproveitando-se de alguma maquilagem ao transitar o dinheiro – facilitado pelas várias brechas fiscais existentes no mundo especialmente após a prática de políticas neoliberais e a presença de redes telemáticas –, informa-se que se pagou X por algo, o que é declarado, mas depois de alguma denúncia percebe-se que o valor pago foi de Y. O que “sobra” na conta foi usado para conseguir aquele produto, criando barreiras político-institucionais, ao pagar para figuras importantes na venda dessas mercadorias “por fora”.

Traffic é dona de jogadores

No caso do Mensalão do PT, do que foi anunciado como resultado das investigações, Marcos Valério usava suas agências de publicidade para receber o dinheiro e repassar para os partidos votarem a favor do governo. Claro que isso com essa quantia percorrendo uma grande trajetória até chegar ao destino final, de maneira a dificultar quaisquer investigações.

Modelo semelhante, e até admitido por partidos no Brasil, seria usado para constituir o caixa 2 nas campanhas eleitorais, em que, dentre outras transações, as empresas de publicidade superestimam a publicidade eleitoral na declaração ao Tribunal Superior Eleitoral, ganhando em troca a conta em caso de vitória do candidato.

Voltando ao Fifagate, tanto gasto de uma empresa de marketing como a Traffic – exemplo usado já que seu dono J. Hawilla é réu confesso – justificando inclusive o pagamento de uma multa tão alta (R$ 500 milhões) para não haver prisão, indica o quanto de dinheiro a organização e a cessão dos direitos de exibição de torneios de futebol geram. Literalmente, vale tudo para se conseguir o que se deseja, pois depois tudo é compensado por uma indústria que movimenta bilhões de dólares anualmente, com cerca de 1,6 bilhões de pessoas direta ou indiretamente dependentes dela.

Vale recordar também que a Traffic atua(va) em diferentes áreas desenvolvidas pelo futebol a partir dos anos 1980, não coincidentemente seguindo as práticas neoliberais que atingiram o esporte, restringindo o acesso dos torcedores aos estádios e ampliando a quantidade de produtos, inclusive a própria transmissão, ligados ao jogo, que viu receitas decorrentes dele serem multiplicadas rapidamente. A empresa é dona de jogadores, organiza campeonatos, é intermediária para a aquisição de direitos de exibição de torneios em diferentes lugares do mundo e já chegou a fazer parcerias para colocar seus jogadores em times em alguns anos – no modelo Palmeiras-Parmalat ou Fluminense-Unimed.

Dirigentes lucram à custa de bilhões de pessoas que adoram o futebol

Esses casos retratam o que é denominado por pesquisadores da Economia Política da Comunicação como a “culturalização da economia”, que aparece a partir dos anos 1970, em que o setor econômico passa a apresentar, dentre outras características culturais, a aleatoriedade como uma importante em tempos de capital financeiro. “Seguir o dinheiro”, como diziam os jornalistas que investigaram o Watergate nos Estados Unidos nos mesmos anos 1970, ficou ainda mais difícil.

A importância da marca merece ser destacada também ao se perceber que a primeira coisa que alguns patrocinadores da Fifa fizeram esta semana foi ameaçar a entidade de romper o contrato, pois é prejudicial ligar a imagem de uma empresa a algo que é visto com maus olhos pelo público. Racional ou por descuido, a entrevista coletiva do presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, na sede da entidade no Rio de Janeiro ocorreu sem o background, banner atrás da mesa que identifica os patrocinadores da entidade, talvez uma forma de não ligar a imagem das “parceiras” no tema que justificou a coletiva.

As considerações aqui expostas servem para destacar que se a corrupção não começou e não é exclusiva do Brasil a partir de 2003, também não o é do futebol, não necessariamente interferindo nos resultados de jogos – ainda que este problema exista há décadas e seja dificilmente solucionado. O esporte que chama a atenção de bilhões de pessoas quase todos os dias é o de dentro de campo, mesmo que a administração por um seleto grupo de pessoas o atrapalhe.

Algumas pessoas afirmaram que o dia 25 de maio seria um dia triste para o futebol. Discordo totalmente. Ainda que considerando que os Estados Unidos podem ter outros interesses sobre este esporte para além da boa vontade em limpá-lo, é a primeira vez que uma ação investigativa prende dirigentes de tamanho escalão, em casos de corrupção denunciados por jornalistas há muito tempo. Por mais que o football association siga sendo de propriedade de uma entidade privada paraestatal – que se diz sem fins lucrativos, mas cujos dirigentes lucram à custa dos bilhões de pessoas no mundo que o adoram.

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Texto publicado na edição n. 853 do Observatório da Imprensa.