terça-feira, 27 de maio de 2014

Será possível?

Ano de eleições e ressurge aquele velho debate sobre posicionamento de grandes grupos de comunicação, que fariam uma cobertura eleitoral para beneficiar determinado candidato. Ainda que seja um debate importante, principalmente a ser lembrado para além deste período, este texto é sobre outros tipos de acusação: o jornalista esportivo pode torcer?

Este assunto me veio à cabeça por conta da reportagem “Jornalistas quebram o protocolo e festejam título do Atlético de Madri“, exibida no programa Redação SporTV (19/5/2014). O repórter Gustavo Machado foi até a redação do jornal As para saber sobre as comemorações dos jornalistas mostradas pela TV do periódico de Madri em seu site ainda no dia 17/5, quando Barcelona e Atlético de Madrid decidiram a liga espanhola. O vídeo do As teve como subtítulo “Emoción, alegría, lágrimas... La redacción de As vibró con el partido que decidió la Liga. ¿Cómo se cantó el gol de Alexis? ¿Y el de Godín?” Nele, um jornalista torcedor do Barcelona assistia sozinho numa sala, enquanto os colegas trabalhavam e miravam as telas de TV e de computador durante a partida que terminaria empatada em 1 a 1, garantindo o título aos colchoneros após 18 anos.

Houve jornalista pendurando o cachecol do Atlético sobre o computador de trabalho, um com camisa na cadeira e outra vestida com a ela. Muitos torcendo em meio ao trabalho, com direito a closes na tela do computador com títulos de matérias a serem postadas. Claro que o vídeo mostra a comemoração e a emoção durante os gols, inclusive quando o Barcelona marca o primeiro e um jornalista grita um “¿Sera posible?”, o mesmo que comemoraria com os colegas ao final do jogo. Ainda que não informado, provavelmente, a surpresa maior da matéria tenha ficado por conta da divulgação do vídeo no site do periódico. Afinal, tirando os casos de disputas com selecionados nacionais, quando isso seria imaginado no Brasil?

“Jornalistas não podem perder a objetividade”

O que chamou a atenção na matéria nem foi tanto o vídeo – depois, pesquisando, vi que houve comemoração, ainda que menos efusiva, e imagens desta durante a final da Copa do Rei, em 16 de abril –, e sim, o tal do protocolo que havia sido quebrado pela redação, a ponto de ser necessário buscar justificativas para jornalistas esportivos comemorarem a vitória de seus clubes.

O vice-diretor do As, Luis Nieto, destacou que se tratava de uma imagem num âmbito privado – ainda que divulgada em espaço público como a internet – e fez questão de frisar que “os profissionais são capazes de diferenciar a paixão por um clube e a imparcialidade necessária para se escrever sobre futebol”, trecho em citação indireta. Os jornalistas afirmavam que não costumavam fazer aquilo, mas se tratava de uma ocasião especial, afinal, não sabiam quando o Atlético poderia ganhar outra vez o torneio – que não ia ao Vicente Calderón desde a temporada 1995-1996.

Lendo a matéria e vendo o vídeo, lembrei-me de duas coisas. Uma é que antes mesmo de estarem formados, estudantes que conheci recentemente e que têm interesse em trabalhar como jornalistas esportivos optam por dizer que não torcem por ninguém no Estado, assim como jornalistas já na ativa e que fazem matéria nesta área com maior frequência. Óbvio que, como às vezes se discute pelo Brasil, há a questão da segurança do profissional. Mas vejo isso mais como uma demonstração da introjeção do mito da imparcialidade que qualquer outra coisa.

Sobre isso, resgato a citação de Luis Nieto, cuja opinião eu endosso:

“O futebol é um esporte subjetivo e ninguém se apaixona pelo futebol sem torcer por uma equipe, e os jornalistas muito menos. Quando alguém começa a gostar de futebol e a torcer por uma equipe, vai tomando conhecimento. E em um local privado, como é o comportamento de uma redação, que é uma casa, é compreensível que alguns comemorem e outros fiquem tristes. Os jornalistas não podem perder a objetividade que se deve ter.”

Tônica do processo

Não consigo imaginar alguém que queira trabalhar como jornalista esportivo, especialmente num país com a relação que se tem o futebol como no Brasil, que não torça por clube algum. Tudo bem que a maioria opta por omitir a informação, mas, reitero, há quem negue que torça por alguém.

Vejo que uma coisa é num espaço privado, outra é na execução do trabalho. Não é porque, por exemplo, eu torça pelo Palmeiras que, enquanto jornalista esportivo, tentarei interferir na vida do clube durante o meu trabalho, seja para prejudicar determinado agente ou beneficiar o time nas reportagens, debates e jogos que participar. Entretanto, nada impede que, em momentos de folga, possa torcer pelo time.

A segunda coisa que me veio à lembrança vai ao sentido do que o público brasileiro espera, o que talvez explique a “quebra de protocolo” no título. O pesquisador francês Patrick Charaudeau desenvolveu, dentre outros conceitos na área da linguagem, o conceito de “contrato de informação midiático” para analisar as restrições no ato de comunicar por quem trabalha em mídias. Este contrato leva em consideração o público-alvo que se imagina ao produzir uma informação, que estabeleceria os limites de quem produz, ainda que não se possa saber exatamente qual será a interpretação do receptor. Da mesma forma, o receptor chegaria a um produto sabendo de suas possibilidades de informação.

O costume do brasileiro de ver os jornalistas esportivos como imparciais, totalmente neutros, mesmo xingando os narradores e comentaristas quando falam mal do seu clube ou narram gols do adversário, acaba sendo a tônica do processo. A tal ponto que quando ocorre algo diferente do que se imagina, ou se tem uma rejeição ou quem toma a posição vira uma espécie de estereótipo – e também uma maneira de atrair determinado público.

Zona intocável

Para se ter uma ideia, no ano passado dois jornalistas de canais segmentados nacionais foram ao Independência ver o Atlético Mineiro na Libertadores. Em algum momento, apareceram na transmissão de TV fechada e logo receberam várias críticas nas mídias sociais.

O caso espanhol nem chega a ser tão anormal. Afinal, quem lê ou acompanha um pouco do jornalismo esportivo de lá sabe que há o “jornal de Madri”, o jornal de “Barcelona” e muito conteúdo que toma partido, que opta por quase sempre destacar o clube local.

O Brasil é diferente. Aqui, jornal é uma entidade que tenta se mostra (quase) sem opinião e o jornalista tem de ser mais insensível que um robô. Muitos consumidores de informação entendem deste jeito, sendo que as exceções, vistas na Band, no exemplo esportivo, acabam virando modelos estereotipados, em que determinado comentarista tem que se assumir quase sempre como torcedor do time tal, com direito à provocação sobre os rivais ao tratar deles. Além, é claro, de alguns exemplos de comentaristas ídolos de determinados clubes, que acabam automaticamente tendo sua imagem ligada a ele mesmo depois da aposentadoria.

Há exceções “permitidas”. Este é o caso da Seleção brasileira, a “pátria de chuteiras”. Ainda que alguns não achem isso correto, é possível até torcer claramente por ela, com muito ufanismo. Algo parecido ocorre em grupos de comunicação regionais fora do eixo Rio-São Paulo, em que a equipe torce pelo time local em competições fora do Estado. As transmissões de Rio Grande do Sul e Minas Gerais nas Libertadores conquistadas por Inter e Atlético nos últimos anos, mesmo em jogos contra times brasileiros, estão aí para provar.

Por conta do contrato de comunicação estabelecido entre o jornalismo esportivo e os torcedores que acompanham as informações por determinado meio aqui no país, o tal do protocolo imaginado pelo pessoal do SporTV, coisas como a feita pelo As, em Madri, poderiam ser de difícil aceitação no Brasil, ainda que o futebol continue sendo paixão nacional. Mesmo com o aparecimento de um jornalismo esportivo mais voltado para o entretenimento na TV, assumir o clube de coração segue sendo uma zona intocável nos principais meios de comunicação do país.

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Texto publicado na edição de nº 800 do Observatório da Imprensa.

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