terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Veneno remédio: o futebol e o Brasil

Havia comprado o livro em fevereiro do ano passado, em meio a uma incessante busca na internet por livros que tratam, mais de forma teórica do que literária, do que viria a ser mais que um amor eterno, o meu observável de estudo: o futebol.

Talvez pelo tamanho (450 pp.) ou ainda pela dúvida se Veneno remédio: o futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008) poderia me ser extremamente útil para a pesquisa, a ponto de o ler antes de qualquer um, fato é que ele estava no meio da fila de livros que pretendo ler e que tenho em casa - fila esta que pouco anda, já que sempre aparecem outros e outros textos a serem pegos na biblioteca...

Enfim, foi preciso uma bronca sugestão na banca de qualificação, pela ausência de qualquer referência a este livro escrito pelo professor de literatura brasileira na USP (e ensaísta, músico e compositor) José Miguel Wisnik. Colocado como primeiro da fila, após a leitura das obras de "férias" e de outro livro para artigo "encomendado", eis que finalmente cheguei a ele...

... E rapidamente passei por ele. Wisnik tem um texto que flui tanto quanto uma música, um grande texto literário ou o bailar tem um dos nossos gênios futebolísticos, além de o assunto ajudar a não querer parar de lê-lo, seguir mais um pouquinho por suas páginas. Um relato que apresenta todas as discussões, pertinentes ou não, que povoam o imaginário popular e o teórico - apesar de seus preconceitos - sobre o assunto.

Wisnik se propõe a fugir os estudos de grande abrangência sobre o futebol, que analisam aspectos sociológicos, políticos e econômicos, mas que esqueceriam de analisá-lo por dentro, este jogo que foi/é capaz de apaixonar bilhões de pessoas nas mais variadas partes do mundo. Uma crítica que já havia lido  no livro Elogio da beleza atlética, do alemão Hans Ulricht Gumbrecht (Companhia das Letras, 2007), este também citado algumas vezes em Veneno remédio, e que me faz ter o cuidado de tentar não ser apocalíptico em relação a este esporte, o que seria uma tremenda incoerência da minha parte.

Por falar em citações, o autor usa, discute e abusa de sociólogos, historiadores, filósofos, músicos, cineastas, artistas, escritores, psicanalistas brasileiros e estrangeiros para tratar do esporte aqui apontado que tem a possibilidade de envenenar as pessoas na mesma proporção de ser o remédio para inferir ao Brasil, de fato, o título de uma Nação igualitária - com suas discussões sobre coisas como a "democracia racial".

Mário e Oswald de Andrade, Franklin Foer, Graciliano Ramos, Tostão, Chico Buarque, Ruy Castro, Lima Barreto, Pier Paolo Pasolini, Nelson Rodrigues, Mário Filho e tantos outros que vão tabelando ou contra-atacando músicas, comentários, defesas e pilhérias sobre o esporte de maior recepção e prática mundial - apesar da resistência do império estadunidense.

A seguir, alguns trechos dos livros e, quando eu achar necessário, alguns comentários sobre ele. Afinal, vale bem mais a pena incentivar que os quem gostam de futebol o leiam.

PRELIMINARES
"Viver o futebol dispensa pensá-lo, e, em grande parte, é essa dispensa que se procura nele. Os pensadores, por sua vez, à esquerda ou à direita, na meia ou no centro, têm muitas vezes uma reserva contra os componentes anti-intelectuais e massivos do futebol, e temem ou se recusam a endossá-los, por um lado, e a se misturar com eles, por outro" (p 11-12).

Nas preliminares, ele traz alguns dos temas que irão aparecer ao longo do livro. Além da crítica anterior ao "receio" que se tem de estudar o futebol, Wisnik traz discussões sobre a forma de se jogar, que é definida pelo jornalista italiano Pier Paolo Pasolini entre alguns tipos de prosa, caracteristicamente europeus, e a poesia, sendo o momento do gol sempre poético.

O Brasil teria desenvolvido, apropriado-se de forma antropofágica (à la Oswald de Andrade) do futebol bretão e desenvolvido da melhor maneira possível a poesia em se tratar a bola. Mais à frente, ele dedica um trecho só sobre o futebol brasileiro, mas aqui ele deixa claro que neste país "para o bem e para o mal, uma das maneiras pelas quais o país se fez ser foi o futebol" (p. 28).

2. A quadratura do circo: a invenção do futebol
O segundo trecho é dedicado à apresentação de como o futebol foi "inventado" ou, para melhor dizer frente a tantas práticas com bola, normatizado da forma aproximada com a qual conhecemos atualmente, na segunda metade do século XIX pelas escolas do Reino Unido, em meio ao mesmo presenciado vivenciado em outros esportes, como o boxe, a luta livre, o tênis e o rúgbi.

Segundo Wisnik, após muito tempo sendo renegado pela elite britânica, o esporte reaparece e vem a ser normatizado num ambiente dela, nas escolas, a partir de 1863. Todo o seu desenvolvimento, a partir do poderio do império do Reino Unido, vai gerar relações diferentes, e dialéticas, que justificam e aparecem como elementos em que o veneno e o remédio de sua utilização aparecem: violência e paz; pretos e brancos; pobres e ricos...

Diz ele:
"Assim, diferentemente daquela ideia de que, por ser alienante, o futebol impede a emancipação da vida social, pode-se arrisca a hipótese de que ele se tornou, no mundo contemporâneo, o índice oscilante e problemático da própria condição de possibilidade da vida civilizada" (p. 55).

O autor divide a história deste esporte em três momentos: 1. (... - 1900) máquina a vapor, tempo de se dar um bicão na bola para os pontas correrem atrás dela; 2. (1900-1970), com o capitalismo desenvolvido de produção, é a vez dos times-máquinas, muitos oriundos de empregados de empresas; 3. o atual processo, num capitalismo desenvolvido de consumo, o lazer está envolvido no centro de um complexo mercadológico. Giulianotti dividirá como: pré-moderno, moderno e pós-moderno.

Alguns outros temas, para mim interpretações polêmicas, são discutidas neste trecho, caso da errônea ligação entre a violência das torcidas organizadas aos pobres - quando os líderes das TOs, ao menos no Brasil, são de classe média (alta) -; a criação do comentarista de juiz, este ex-juiz-comentarista que vem a ser o árbitro do árbitro; o goleiro como representação de uma mulher, fazendo o possível para ser imaculado, enquanto o centro-avante seria o "macho", que tenta o gol a todo o custo; a relação, bem interessante, entre os donos do campo (equilibrados europeus) e os donos da bola (equilibristas sul-americanos), que teria uma ligação com as origens excludente do futebol, mas que, em meio a uma miscigenação cultural, como a apresentada na seleção alemã, não pode servir de um frio parâmetro - afinal, é uma análise sob o signo das Ciências Humanas e Sociais.

Algo que achei genial foi, em meio a uma discussão em plena Copa do Mundo FIFA 1998, o convidado artista do debate pós-jogo dá uma aula em quem pretende ver o futebol como elemento de análise científica:

"Gilberto Gil, presente, postulou então a ideia, no mínimo insólita naquele contexto, de que a objetividade no futebol é relativa à percepção possível dos fenômenos, inseparável da sua realidade no tempo e nas condições da partida, e que, portanto, uma infração não existe 'objetivamente', na realidade ou na máquina que a registra, mas somente na fração de tempo em que ela é possível de ser captada em jogo" (109).

Este jogo que é capaz de ter uma zona limiar de tempos culturais, capaz de fazer com que diferentes culturas se aproveitem do mesmo e o tenham como uma forma de admiração para além de outras relações sociais.

3. A elipse: o futebol brasileiro
Este trecho discute o futebol e suas inúmeras polêmicas no Brasil, lugar em que aparece oras como o remédio universal (de um país amadurecido), outrora como um veneno das idiossincrasias do mesmo, que o tornam o veneno desta nação (ainda imatura).

O futebol desenvolvido no Brasil, em meio a um movimento inicial de elitismo, em que os pobres e negros não podem jogar e sequer acompanhá-los nos clubes, acaba por gerar uma discussão entre vários autores durante o processo de "democratização racial" que ele passa a desenvolver a partir da década de 1920 - por mais que isso ainda não seja real até hoje nas funções de poder do esporte, cartolas, técnicos e até repórteres... Havia discussões tanto pelo fato de ser um esporte estrangeiro quanto de quem acreditava que ele poderia significar a volta da "pureza" do país, sem a participação de outras classes sociais.

Vilém Flusser, autor que passou um bom tempo no Brasil e que eu conheço parte de sua obra (mais por motivos "tecnoculturais"), também escreveu sobre o futebol aplicado no Brasil, apontando ensaisticamente nele a possibilidade de um novo tipo de homem, que não mais seria voltado ao trabalho, mas que o veria como uma forma de lazer: o "homo ludens":

"[...] anomalia que não deixa de ser o cerne do pensamento de Flusser sobre a alineação brasileira [trabalho alienado de um avesso do avesso], que lhe dá um estatuto problemático mas afirmativo: de tão funda e sem lastro histórico, a alienação brasileira converte a realidade em jogo e encarna possibilidades de autêntica libertação" (p. 108).

Neste trecho, Wisnik faz uma interessante análise sobre o percurso do futebol no Brasil, de amador às participações em Copas do Mundo, até 2006 (Alemanha). Destrinchando as mudanças do público que ficam na dúvida entre a derrota histórica universal (caso histórico e "eterno" do "Maracanazo" em 1950) à glória triunfal de ser o melhor, com necessidade de se provar isso sempre (Copas de 1958, 1962 e, especialmente, 1970), o veneno e o remédio entrelaçados o tempo inteiro. "Não é a toa que, que visto pelo prisma do futebol, o país se realiza extraordinariamente enquanto não se realiza nunca" (p. 244).

As descrições sobre a domingada de 1938, o (para mim) esplendoroso caso de 1950 - tendo como análise "psicologizante" as "Touradas em Madri" da goleada de véspera sobre a Espanha -, e, algo bem interessante, a antítese dos dois maiores gênios que pisaram no solo: Garrincha e Pelé. Dentre outras diferenciações, Wisnik apresenta esta: "Um [Garrincha] é o trabalhador amador que viveu voltando para a origem, o mato e a pelada, de onde parece nunca ter saído; outro [Pelé] é o profissional precoce, que passou já metade da sua adolescência dentro de um clube de futebol" (p. 286).

Outra diferenciação importante, que segue as mudanças no futebol, é o destaque que o treinador passa a ter, especialmente a partir da polêmica trajetória do comunista João Saldanha como comandante da seleção brasileira de 1969 até às vésperas do Mundial em plena ditadura militar. Para Saldanha, as feras tinham que jogar e, mesmo a contragosto de Zagallo, jogaram muito bem juntas em 1970 - Pelé e Tostão jogavam na mesma posição, mas o último se "sacrificou" pelo time, Rivelino e Gerson idem, Piaza saiu do meio para a defesa para abrir espaço para Clodoaldo... E poucas vezes depois se viu um time assim, talvez nunca mais veremos.

A partir de 1970 passa-se literalmente a se ver futebol, que, com grande ajuda do cartola dos cartolas João Havelange, globaliza-se e mercantiliza de uma maneira impressionante, superando qualquer tentativa ianque de se criar o espetáculo, científico e medido, no lugar da imprevisibilidade futebolística. Partindo para o intermezzo até 1994, com o time de 1982 chegando ao auge da performance técnica e de autoconsciência sobre o futebol - que, com a derrota, fez o Brasil retroceder em seu "estilo" de jogo.

A década de 1990 tem como figura simbólica Ronaldo Nazário, um dos primeiros a sair ainda menor de idade para jogar fora do país e o primeiro dentro do projeto da Nike de se mundializar - após fracassada tentativa no basquete. Do auge à queda colossal em pouco tempo, com direito às graves lesões pós-1998. Da Copa que deveria ter sido o grande jogador à redenção monumental em 2002 sob comando "paternalista" do bravo Felipão. Romário representando o elo de discórdia do malandro (Macunaíma ou Garrincha) em tempos de profissionalização e sendo protagonista, mesmo que indireto, em três convocações para mundiais.

Ronaldinho Gaúcho também é destacado, mas é Rivaldo que merece uma grandiosa importância, ao ser lembrado como um dos maiores jogadores do mundo também em duas Copas do Mundo (1998 e 2002) e pouco reconhecido: "fora de campo, Rivaldo não ostenta riqueza, não exibe intimidade, não irradia poder, não se comporta como astro pop nem se converte a um cosmopolitismo emprestado" (p. 381).

4. Bola ao alto: interpretações do Brasil
Wisnik encerra o livro com interpretações do Brasil que partem do futebol, mas vão além dele. Este esporte que, apesar de ser exposto de todas as formas:

"às manobras da publicidade capitalista, é ainda assim o lugar onde se encontra algo que 'falta ao cotidiano capitalista' [...] um código simbólico reconhecível, capaz de expressar e atravessar as diferenças culturais, a postulação e a superação da concorrência na forma de um jogo-rito, a quadratura do circo, mesmo no limite da sua inviabilização" (p. 429)

José Miguel Wisnik defende em Veneno remédio: o futebol e o Brasil a necessidade de não se questionar a relevância do futebol, em detrimento de "fatos importantes", mas que as pessoas sejam capazes de compreender o sentido desta importância para o país, o que ele tenta fazer nestas mais de 400 páginas.

Um livro essencial para quem gosta e que estuda futebol. Além de contar com inúmeras referências - apesar delas não estarem reunidas ao final -, é uma análise aprofundada e consistente sobre esse nosso veneno remédio.

2 comentários:

  1. Estou acabando de fazer um resumo do tópico 4. Para o meu curso de especialização em história do Brasil

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