sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Um pouco de ar, por favor! (ORWELL)

Acabei colocando o autor entre parêntesis para não acharem que é uma reclamação da minha parte - algo que deixaria para a coluna "Em busca do El Dorado". Seria um bom título até para representar a vida nestes primeiros dias do ano, mas de fato este texto se refere a outra coisa, ou melhor, a um livro. Um pouco de ar, por favor! é o título traduzido para o português do livro do jornalista britânico Eric Arthur Blair. Não reconhece o autor? Pois bem, o pseudônimo, conhecidíssimo, já está na imagem que apresenta este modesto texto: George Orwell.

Confesso que a minha escolha de livro para ler nas férias era outra. Na realidade, pretendia pegar Dias na Birmânia (1934), que conta a verdadeira face colonizadora do império britânico na Índia, porém - como boa parte das coisas que havia planejado para estas "férias" -, acabei não conseguindo, pois não o encontrei na Biblioteca da Unisinos, mesmo que tivesse duas edições.

Olhando na seção de Orwell acabei encontrando Mantenha o sistema e Moinhos de Vento, que, quando li a contracapa percebi que já havia lido por inteiro, pois conhecia o protagonista, Comstock. Esses foram os títulos para traduções iniciais de A flor da Inglaterra (1936), livro que já li anos atrás.

Um pouco de ar, por favor! (1939) acabou sendo a única alternativa para quem pretendia relaxar lendo George Orwell, se é que isso é possível. O legal, do ponto de vista biográfico, é que este é o último livro do autor publicado (um pouco) antes da Segunda Guerra Mundial e, o principal, é a obra que antecede os seus clássicos e excelentes A Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1948). Por conta da reedição da Editora Itatiaia, provavelmente para sua maior difusão, aparece o sub-título "na sombra de 1984", o que acaba nos empurrando para possíveis comparações ou aparições de passagens que você pense que o protagonista deste livro deixe dicas do temor apresentado no livro futuro.

UM POUCO DE AR, POR FAVOR!
Até para evitar ainda mais momentos de comparação, para além dos naturalmente feitos ao longo da leitura, optei por não ler os textos publicados aqui no blog sobre os três livros que já li de Orwell.

Um pouco de ar, por favor! é a história do e pelo vendedor de seguros George Bowling, um homem de meia idade, que aos 45 anos convive com uma barriga que lhe dá a alcunha de "gordo" ou "gordinho"  (e o "Bowling" seria mera coincidência?) e um emprego de vendedor de seguros o qual, de certa forma, orgulha-se - "Sou vulgar, insensível e me adapto perfeitamente ao meio ambiente" (25). Ele é casado com a ciumenta Hilda, de quem pouco se orgulha, e pai de duas crianças, as quais pouco se preocupa.

O ponto inicial do texto é o dia em que usa pela primeira vez uma dentadura, algo que durante o livro ele passa a maior parte do tempo acreditando que o rejuvenesce, mas que nos momentos mais críticos acaba por não ver diferença alguma.

Fato é que ele está sem o mínimo de paciência com o caminho que a sua vida tomou. Não querendo mais saber da classe média baixa londrina e em busca de coisas que sejam realmente agradáveis de fazer e é por conta disso que percorremos a vida dele ao longo da obra, com suas opiniões sobre a sociedade inglesa da época em todos os níveis. Afinal, como toda obra de George Orwell, a caracterização do contexto socioeconômico é excelente e com uma perspicácia característica.

Sobre isso, o livro foi escrito e narrado por alguém que está em 1939, o ano que marca o fim do período de tranquilidade, como ele vai relatar num dos trechos do livro: "quando a civilização parece firmar-se em suas quatro pernas como um elefante nas suas, que coisas como 'a vida depois da morte' não têm importância" (105). 

Não que Bowling vivesse com toda essa tranquilidade, pelo contrário, a "sombra de 1984" que os editores brasileiros colocaram como o subtítulo representa toda a tensão demonstrada ao longo da obra sobre a Segunda Guerra Mundial, numa provável aliança de Hitler e Stálin - que em determinado momento "perseguem" o protagonista, em sua imaginação, numa mesma bicicleta... O medo dele não estava no caos proporcionado pela guerra em si, mas no que ocorreria após ela:

Guerra! Comecei a pensar nisso novamente. Logo estará aí, com certeza. Mas quem tem medo de guerra? Isto é, quem tem medo de bombas e metralhadoras? - 'Você tem', diz você. Sim, tenho, assim como qualquer pessoa que a tenha visto. Mas não é a guerra que importa, é o após-guerra. O mundo no qual seremos arremessados, aquela espécie de mundo de ódio, o mundo dos slogans. As camisas de determinada cor, o arame farpado, os cassetetes de borracha. As câmaras secretas onde a luz elétrica brilha dia e noite e os detetives ficam de guarda enquanto você dorme. E os comícios, os cartazes com caras enormes e as multidões, milhões de pessoas todas a dar vivas ao seu líder até que elas mesmas se ensurdecem, pensando que elas o apoiam quando, durante todo o tempo, no seu íntimo, odeiam-no e então só desejam vomitar. Tudo isto vai acontecer. Ou não vai? Em determinados dias sei que é impossível mas, em outros, sei que é inevitável” (151).

A necessidade de ar, não só para fugir da sua esposa Hilda, muito idiota com suas amigas para várias coisas, mas inteligentíssima para descobrir as traições do protagonista; ou da impaciência com a Londres congestionada de "lixo", representa o precisar de escapar de tudo, que só o lembra a guerra prestes a começar.

O livro é dividido em quatro partes. Na primeira há a apresentação de um cenário de sensações e situações cotidianas de Bowling, encerrando com algo que ele vê como manchete de jornal e o faz lembrar da infância: Rei Zog lembra um canto da igreja, ao qual ria porque formava "and Og"(dog). Na parte seguinte ele vai percorrer as memórias da infância, como foi sua criação em Lower Binfield, cidade em que viveu até os 16 anos, vendo o pai trabalhar numa armazém próprio - em meio à invasão de novos e poderosos concorrentes -, a mãe fazendo as tarefas de casa e o irmão perturbar a família até abandoná-la em definitivo. 

Uma de suas grandes lembranças está nas pescas realizadas, nos peixes deixados em sua cidade natal após promessas de um dia retornar a lugares inóspitos que, imaginara, só ele conhecia, podendo pescar peixes ainda maiores do que o que vira naqueles tempos.

Apesar de ter se apaixonado pela leitura quando adolescente, algo que orgulhar ter feito enquanto pôde, e apresentar inteligência que surpreendera a própria família, não estudou muito por conta da crise  financeira que a família passaria. Ainda assim, ele destaca que no fundo não faria tanta importância:

Quando entrei em contato com os rapazes das classes superiores, como aconteceu durante a guerra, fiquei muito surpreendido ao verificar que, na realidade, eles jamais conquistam aquele espantoso domínio de conhecimentos que se supunha deveriam conseguir nas escolas. Ou as escolas os reduzem a perfeitos idiotas ou passam o resto das suas vidas a protestar contra elas. Assim não acontecia com os rapazes de nosso meio, filhos de negociantes e fazendeiros. Ingressava na Grammar School e lá se ficava até os dezesseis anos, para mostrar que não se pertencia ao proletariado, – mas a escola era, principalmente, um lugar de onde se desejava sair” (70).

O seu divisor de águas, assim como de muitos da sua época, foi o alistamento para a Primeira Guerra. Mundial. Servindo fora do país, acabou por se machucar e retornou para ser tratado na Inglaterra. Após recuperação, foi reencaminhado para uma cidade no extremo do país para tomar conta de 11 latas de conservas durante dois anos. Mesmo reclamando que não havia depósito a tomar conta, continuou por lá vigiando algo que não existia. Para sua sorte havia livros e revistas o suficiente para se entreter.

Ainda assim, a partir de 1918, até na longínqua localidade de Twelve Mile Dump havia a sensação de estar se lutando por nada, não tendo mais a identificação dos adversários de front como alguém que se deveria matar a todo o custo. Ele descreve esse período como o de um niilismo causado não necessariamente porque a guerra fizera com que as pessoas virassem intelectuais.

Terminada a guerra, ele e todos os outros foram demitidos sumariamente do Exército e tiveram que arranjar emprego, momento em que até teve sorte, já que arranjou o lugar "comum" da época, ser vendedor viajante e numa dessas visitas às empresas acabou conseguindo o emprego como vendedor de seguros.

O período deprimente pós-Primeira Guerra, o qual tanto o atemorizava para depois da Segunda, foi assim descrito:

Aquele foi um tempo estranho, dos anos logo após a guerra, e quase até mais estranho que a própria guerra, embora se pessoas não tenham conservado uma lembrança tão vívida. De uma maneira muito diferente, o sentimento de descrença por tudo era mais forte do que nunca. Milhões de homens foram subitamente despedidos pelo exército, para verificar que o país pelo qual haviam lutado não tinha lugar para eles e que Lloyde George e seus pares estavam liquidando com quaisquer ilusões que ainda existissem” (126).

Ah, na primeira parte ele lembra que tinha uma dezena de libras guardadas no banco, de modo que nem a esposa, sempre preocupada em gastar menos, sabia. É com ele que resolve partir de volta para sua cidade natal, em busca de "um pouco de ar". As partes derradeiras são dedicadas a isso: sua preparação, ida a Lower Binfield em busca dos fantasmas de suas memória e o resultado dessa volta.

Para não me prolongar ainda mais e também para não contar trechos importantes que guiariam para o final da expedição, basta dizer que a narrativa se assemelha à realizada por Gordom Comstock em A flor da Inglaterra.

Como deixa de conclusão, um trecho que na minha imaginação fruiu bem e que serviria bastante para quem desenha, escreve e/ ou interpreta e que vem dentre as páginas finais:

Um pote de geleia havia rolado pelo assoalho, deixando atrás de si um rastro de marmelada e, ao lado dele, corria, paralelamente, um grosso fio de sangue. Mas no meio de toda a louça quebrada jazia uma perna. Apenas uma perna vestindo ainda a sua parte da calça e trazendo no pé um salto de borracha. E era exatamente diante daquilo que o povo as exclamações que estava ouvindo” (222).

REFERÊNCIA
ORWELL, George. Um pouco de ar, por favor!: na sombra de 1984. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000 (1939). Título original: Coming up for air.



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