quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Paixão à primeira vista: Animação de "Morte e Vida Severina"

Não sou fã de poemas e/ou poesias, prefiro os romances, os contos e as crônicas. Mas hoje comecei a mudar (um pouco) de ideia por conta de um audiovisual: Morte e Vida Severina (dezembro, 2010). 

Baseado no poema de José Cabral de Melo Neto, cujo subtítulo é "Ato de Natal Pernambucano", esta sugestão me veio através do blog do jornalista Luiz Nassif. Acabo de ver a animação baseada nos quadrinhos de Miguel Falcão, numa coprodução da Função Joaquim Nabuco (Pernambuco) e da TV Escola, e não podia deixar de escrever o quanto antes sobre ela.

Primeiro, se não gosto de poesias ou poemas, sejam "tradicionais" ou dramáticas, como é este o caso, acabei ao longo da minha formação escolar descobrindo que sou fascinado por desenho. Longe de saber desenhar, eu já tive meus momentos de rascunhar alguma coisa ou outra - além de sempre ter várias ideias, mas que o tempo não me permite mais -, principalmente como uma forma de relaxar, mas tenho absoluta certeza que não é uma atividade para mim, pois não tenho um traço que me caracterize.

Assistindo à animação, eu gostei muito da forma que as pessoas são desenhadas. Por mais simples que para um especialista no assunto possa parecer, e por mais que talvez o sentido não tenha sido este, a ideia de deixar os olhos fundos, sem o tradicional globo ocular nos obriga a tratar as personagens de uma forma ainda mais diferentes. O olhar reflete o mundo que você vê e o como você sente este mundo visto. Sem ele, a interpretação de quem assiste se abre e a atenção tem que se fixar no desenrolar das imagens e da narração/sons.

Indo para a animação per si, gostei de algumas transformações de objetos para se mudar a cena. Num trecho, um flor brota numa palma e do seu interior surgem redes, de forma a continuar o diálogo escrito por João Cabral de Melo Neto. Um recorte bem mais sutil do que os que aparecerão a seguir, típicos de intervalos comerciais, o fundo negro e ponto - que provavelmente reflitam as paradas do próprio texto.

Ah, empolguei-me com a animação e esqueci de apresentar o poema - se é que ninguém ouviu falar dele, o que acho bem difícil. Morte e Vida Severina trata da história de um retirante, que sai do sertão nordestino em busca de uma vida melhor, viver para além dos 30 anos, no litoral. Será que isso é possível? O poema, e neste caso junto com a animação, nos mostra.

Como cenas de destaque que mais me marcaram, além da transformação da flor brotando em rede, há o trecho inicial, em que ele tenta se apresentar. Mas é tão comum ser Severino, como também ser Severino da [mãe] Maria, mas também da Maria do finado Zacarias, pois pode ser confundido com um famoso coronel...

Depois, no meio do caminho, o encontro com um Severino que morreu de "morte matada", sendo carregado por dois "irmãos das almas", por conta de uma plantação de palha de dez quadras, que uma ave-bala, que sempre vive passarinhando por aí, acabou encontrando.

Já num lugar "melhor", encontra uma casa de certo nível. Severino pergunta por emprego, apresentando todas as opções de trabalho que já tinha feito, sendo negado em todas elas. Afinal, diz a rezadeira:

"Como aqui a morte é tanta, 
só é possível trabalhar 
nessas profissões que fazem 
da morte ofício ou bazar. 
Imagine que outra gente 
de profissão similar, 
farmacêuticos, coveiros, 
doutor de anel no anular, 
remando contra a corrente 
da gente que baixa ao mar, 
retirantes às avessas, 
sobem do mar para cá. 
Só os roçados da morte 
compensam aqui cultivar, 
e cultivá-los é fácil: 
simples questão de plantar 
não se precisa de limpa, 
as estiagens e as pragas 
fazemos mais prosperar 
e dão lucro imediato 
nem é preciso esperar 
pela colheita: recebe-se 
na hora mesma de semear". 

Na cena, um gato até tenta encarar dois urubus, mas acaba ficando só os ossos grunhindo para animais que voam embora de mais presas. Depois aparece a "plantação" de mortos aparecendo, cuja semeadura vem no mesmo instante que se planta.

Na Zona da Mata encontra muita cana - essa "maldição" nordestina que os alagoanos conhecem muito bem - e sente no pé a diferença da terra macia. Neste trecho vem o diálogo que ficou conhecido na música "Funeral de um Lavrador", de Chico Buarque - ouça abaixo.





Em Recife o negócio não melhora tanto. Sentado na calçada, Severino escuta dois coveiros reclamando da situação na cidade, já que os retirantes acham que vão melhorar a vida, mas só sabem se aproximar de suas covas. O protagonista passa a viver a dúvida que o acompanhará até o final: jogar-se da vida ou esperar que o que se jogou nela mude tudo?

Evitando spoilers, para terminar, o "Auto de Natal Pernambucano" não traz reis magos e seus presentes caros, mirra, incenso e ouro, mas o que a população pode dar à nova criança vinda ao mundo. Das ofertas, achei bem legal o seguinte trecho, que mostra a pobreza e a esperança das pessoas:

"Minha pobreza tal é 
que não tenho presente melhor: 
trago este papel de jornal 
para lhe servir de cobertor 
cobrindo-se assim de letras 
vai um dia ser doutor". 

Desculpem os fãs desta grande obra se o relato foi resumido. Se eu não tivesse hoje pego os livros, "Morte e Vida Severina" com certeza seria um a ser escolhido. Confira abaixo toda a animação.

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